Roberto Garrido, promotor de justiça: “Nos grupos que atuam na Macrozona Sul, há uma atuação que não é diferente da do Trem de Aragua”
Um dos crimes que mais impacto causou no Chile, pelo menos no último ano, foi o assassinato de três policiais militares —Carlos Cisternas, Sergio Arévalo e Misael Vidal—, em 27 de abril de 2024, em Cañete, na região de Biobío, na Macrozona Sul. Emboscados à noite enquanto monitoravam a prisão domiciliar de um detido por um caso de drogas e armas, foram mortos a tiros e depois tiveram seus corpos queimados nas proximidades, dentro de sua caminhonete institucional. Por trás da investigação, que resultou na detenção dos três autores —o último deles, Tomás Antihuen Santi, foi capturado na sexta-feira, 21, após oito meses foragido—, está o promotor-chefe da região de La Araucanía, Roberto Garrido (Concepción, 49 anos). Era um caso complexo: ocorreu no escuro, em uma área rural de estradas sinuosas, não havia testemunhas diretas e as câmeras de segurança eram escassas.
Apesar dessas dificuldades, Garrido conta que, quando a investigação começou, ele e sua equipe mantiveram “a confiança” de que avançariam. “Sabíamos que haveria pressões [por resultados rápidos] e provavelmente críticas por interesses bastante questionáveis do mundo político, mas tínhamos a tranquilidade de que conseguiríamos prender os envolvidos”, afirma nesta entrevista ao EL PAÍS.
De fato, três meses após o triplo crime, foram detidos Felipe (29 anos) e Yeferson Antihuen Santi (19), além de Nicolás Rivas Paillao (19), por fornecer uma espingarda. O quarto, Tomás Antihuen (25), irmão de dois dos acusados, foi encontrado em uma casa pertencente a um homem que faz parte de um dos grupos radicalizados que atuam na Macrozona Sul. Nesta segunda-feira, durante a formalização da acusação, o juiz que conduziu a audiência, Cristian Rosenberg, disse que o assassinato “foi executado com um grau de desprezo pela vida humana raramente visto”.
Dois dos irmãos tinham antecedentes. Antes do triplo crime, após o roubo de uma caminhonete, foi encontrado o celular de um deles e, ao ser analisado, havia uma imagem que chamou a atenção de Garrido: “Era uma busca relacionada aos mártires da polícia militar”, relata. Tomás Antihuen, por sua vez, em 2020, ficou seis meses na prisão por lançar coquetéis molotov em um veículo policial, com os agentes dentro, durante um protesto em Cañete. O promotor lembra que, na prisão, ele fez greve de fome porque se considerava “um preso político”. Inclusive, detalha que, na região onde ocorreu o assassinato dos policiais, ainda há pichações que o reivindicam como tal.
Pergunta. Na audiência, o senhor disse que os policiais foram executados. É uma palavra muito forte.
Resposta. A dinâmica dos fatos, que pode ser reconstruída a partir das evidências, de algumas câmeras que captaram o veículo policial em determinado horário, e dos depoimentos de testemunhas que afirmam que, em um momento coincidente com o registro em vídeo, a patrulha passou, mas depois não retornou pelo mesmo local, nos permitiu delimitar os horários. Portanto, a ação foi bastante breve. As características do local onde foram assassinados, explica e complementa, com as análises tanatológicas baseadas nas trajetórias balísticas nos corpos das vítimas. E isso indica que os policiais estavam em uma posição de inferioridade física: ou estavam de joelhos ou deitados no chão quando foram baleados.
P. O senhor já havia investigado um caso como este?
R. Não gosto de comparar um caso com outro, mas aqui há um componente que foge completamente à regra. Já investiguei homicídios, alguns cometidos de forma muito cruel, mas três vítimas não é algo comum. E é preciso acrescentar que eram três funcionários públicos, o que também não é habitual. No ataque a um policial militar, há também algo simbólico. De fato, descartamos que o ataque tenha sido direcionado especificamente a eles, mas sim que poderia ter sido qualquer um que estivesse cumprindo aquelas funções naquele dia.
P. Qual foi o motivo do crime? Uma demonstração de força ou o roubo das armas?
R. Do meu ponto de vista, há uma intenção lucrativa imediata, que é se apoderar das armas. E isso fica demonstrado pelas armas recuperadas nas proximidades da residência [onde ocorreu o crime]. No caso de Tomás Antihuen, ele não só tinha a arma de um dos policiais, mas foi com ela que ele atirou neles. E se pensarmos ainda que [os irmãos] cometiam crimes que normalmente exigem armas e munições, além de usarem coletes à prova de balas e outras medidas de proteção que os funcionários tinham consigo, há ali um ganho imediato. No dia em que a ação foi executada [o aniversário da polícia militar], o fato de transportarem os corpos na caminhonete, incendiá-la e atirar novamente no local contra o veículo é uma demonstração de força. Portanto, o simbolismo está na violência da mensagem de desafio ao Estado e no fato de que o objetivo é semear o medo na sociedade.
P. Durante muito tempo, se disse que na Macrozona Sul há violência rural. O termo ainda é válido?
R. Por um tempo, usamos a expressão “violência rural” para englobar os fenômenos criminosos ligados à reivindicação de direitos. Mas é um conceito que começou a se esgotar, pois já não descrevia o que estava ocorrendo em La Araucanía e em várias regiões do sul. E um avanço importante nisso é a definição desse fenômeno como o que realmente é: criminalidade que atua no âmbito rural e não tem um fim político, mas se mascara sob certos slogans políticos.
P. E o que vocês constataram?
R. Que existem organizações com atividade estável e fluxo de recursos por meio de crimes comuns: roubos [de veículos], plantações de maconha e, portanto, tráfico; roubo de madeira em larga escala com maquinário florestal e extorsão. E quando conseguimos prender essas pessoas, o que aumentou a partir de 2020, elas foram reivindicadas como presos políticos. Inclusive, há homicídios de outras pessoas do povo mapuche. O caso de Freddy Marileo é exemplar, pois ele está preso por matar dois membros da comunidade mapuche e sua estratégia de defesa foi alegar perseguição por ser mapuche. Então, esse discurso revelou a verdadeira natureza dessas organizações. E isso fez com que a violência, que atingiu um pico em 2021, fosse diminuindo gradualmente. Por isso, o crime contra os policiais fugiu à regra e nos chamou muita atenção.
P. O senhor descreve roubos, tráfico de drogas, armas, extorsões. Uma vez comparou os grupos que atuam na Macrozona Sul ao Trem de Aragua. Pode explicar?
R. Em 2021, um dos atos mais violentos em La Araucanía foi o sequestro de duas pessoas em Collipulli, ligadas a uma suposta subtração de maconha. Uma delas conseguiu fugir; e a que ficou com os captores foi assassinada e esquartejada. Seus restos foram dissolvidos em ácido e depois queimados e jogados no rio. Esse ato causou grande comoção no país, mas, algum tempo depois, casos tão graves quanto esse vieram à tona no norte do Chile. Então, nos grupos que operam na Macrozona Sul, há uma atuação que não é diferente de outras organizações criminosas, como o Trem de Aragua. E a coincidência mais notória está em seus postulados que, em alguns casos, são mais explícitos do que em outros: o controle territorial. Seja no sul ou no norte, o objetivo é expulsar o Estado. Isso explicaria, por exemplo, a queima de infraestrutura pública, como escolas, o que permite que quem domina esse território submeta as pessoas à sua vontade, exigindo pagamentos, cometendo crimes, refugiando-se e alegando que exercem o controle naquela parte da região.
P. Foi difícil transmitir à opinião pública que havia criminalidade organizada?
R. Não foi uma mudança que nós motivamos. Nosso trabalho é deixar claro perante os tribunais quais são os crimes e a forma de organização desses grupos. E isso levou a população a reconhecer que não estamos diante de organizações com uma luta romântica em benefício da população, porque o que fizeram por muito tempo foi beneficiar a si mesmos ou a seus líderes. O ataque a veículos de empresas de serviços públicos que realizam reparos em estradas não tem nenhuma ligação com a reivindicação de direitos. Também não estamos diante de formas de protesto violento, como se tentou justificar em algum momento. E não explica por que suas vítimas não são as grandes empresas florestais, como se alegava, mas pequenos empresários que perdem todo seu capital de trabalho. Além disso, uma vez que essas organizações conseguiam o controle territorial, em vez de restituir essas terras, que consideram usurpadas, às comunidades e adotar um modo de vida de acordo com essa cosmovisão, dedicaram-se a explorar a madeira.
Fonte:El País