Antigos dormentes de trem revelam como era o clima do passado no sul do Chile
Durante o auge ferroviário nos séculos XIX e XX, milhares de dormentes foram produzidos a partir de florestas de Nothofagus obliqua, carvalho nativo do sul do Chile. A demanda foi tão alta que contribuiu significativamente para a sobreexploração dessa espécie.
Décadas depois, em trilhos abandonados do Norte Chico, um grupo de cientistas viu algo mais que ruínas. Nos dormentes, ainda bem conservados graças ao clima semiárido da região, eles perceberam uma possibilidade: que a madeira guardasse, em seus anéis, a memória do clima do passado. Assim, a partir de registros dendrocronológicos (o estudo dos anéis das árvores), conseguiram reconstruir como foram as condições ambientais décadas atrás.
As descobertas foram publicadas recentemente na revista Scientific Reports.
"Ano a ano, as árvores formam anéis de crescimento, e a largura deles indica como foi o clima no ano em que se formaram: seco, chuvoso, quente, frio. São um 'arquivo natural' que nos permite fazer reconstruções de alta resolução do clima do passado durante os últimos séculos e até milênios", explica um dos autores do estudo, Duncan Christie, acadêmico do Instituto de Conservação, Biodiversidade e Território da Universidade Austral do Chile e pesquisador do Centro de Ciência do Clima e da Resiliência (CR2).
Sobre por que escolheram dormentes para este estudo e não troncos antigos de carvalho, o especialista responde que "devido à intensa exploração que a espécie sofreu, por causa da qualidade de sua madeira, hoje existem muito poucos lugares no país. E com as ferrovias abandonadas e grande parte dos dormentes fabricados no Chile feitos dessa árvore, esses dormentes surgem como um patrimônio natural e cultural com o qual pudemos estender para o passado a informação".
Para a pesquisa, foram identificados trechos abandonados de linhas férreas e selecionados pelo menos 15 dormentes de três localidades: Ovalle, Alcaparrosa e Chinchillas.
Das amostras analisadas, concluiu-se que pelo menos seis tinham menos de 50 anos, nove estavam entre 50 e 100 anos, cinco entre 100 e 150 anos, e dois ultrapassavam os 300 anos de antiguidade.
Christie destaca que esses "por exemplo, revelaram a seca persistente dos anos 1770, o período chuvoso do início do século XIX e, mais recentemente, o evento de hiperseca do ano 1924".
E acrescenta: "Esses arquivos naturais possuem informações não apenas das variações climáticas dos últimos 500 anos, mas também do impacto humano na exploração das florestas nativas da Patagônia e da detonação em massa de bombas nucleares".
Este último ponto, detalha o profissional, foi possível conhecer porque, para corroborar as datações dos dormentes, também se comparou o nível de radiocarbono na madeira com a curva do hemisfério sul de radiocarbono para o período da Guerra Fria, conhecido como bomb peak, durante o qual ocorreram detonações nucleares e cuja marca ficou registrada globalmente nos anéis das árvores daquela época.
"Também os comparamos com reconstruções que fizemos anteriormente utilizando outras espécies de árvores, como araucárias ou ciprestes da cordilheira, de outros parâmetros climáticos, como a vazão do rio Maule. O registro das larguras dos dormentes mostrou grande semelhança com esses também, demonstrando assim o valor desses pedaços de madeira histórica para o desenvolvimento de estudos do clima do passado", conclui Christie.
Fonte:El Mercurio